sábado, 15 de agosto de 2009

Apontamentos sobre o homicídio culposo e a embriaguez ao volante

HOMICÍDIO CULPOSO.

ART. 121, § 3° "Se o homicídio é culposo. Pena: detenção, de um três anos".


A culpa strictu sensu é genericamente enunciada no art. 18, II, do Código Penal, de onde Maggiore extraiu o seguinte conceito: “É a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz um resultado antijurídico não querido, mas previsível (culpa inconsciente), ou excepcionalmente previsto (culpa consciente), de tal modo que podia, com a devida atenção, ser evitado.”
Portanto, são elementos da culpa strictu sensu:

(1) conduta voluntária - ação omissiva ou comissiva esponstaneamente praticada pelo agente, sem estar obrigado por fatores externos, acidentais ou não;

(2) resultado danoso indesejado - componente aleatório (sorte ou azar) que pode ou não se produzir como consequência do primeiro elemento;

(3) previsibilidade - qualidade do fato susceptível de previsão ao homem médio. Portanto, se não há possibililidad de previsão objetiva do resultado, descabe falar em culpa, como ocorre, v.g., quando presente a culpa exclusiva da vítima, em que o resultado ocorreria de qualquer jeito, independentemente da conduta do agente. Por exemplo, quando o suicida se atira à frente do veículo conduzido de maneira imprudente, afasta-se a culpa do condutor, já que o dano ocorreria de qualquer forma. Sendo previsível esse resultado, o agente pode ou não prevê-lo; mas, se não o faz - e o fato é previsível ao homem médio - incorre na chamada culpa inconsciente; mas se há previsão do resultado danoso junto com a sincera repulsa do agente à sua ocorrência, cogita-se de culpa consciente ou culpa com previsão. Nesse ponto, entrelaça-se com o dolo eventual, o que tem suscitado acendradas polêmicas. Compensação e concorrência de culpas. Não há compensação de culpas no direito penal. Asssim, a culpa do agente não pode ser compensada com a da vítima e seu único efeito possível ocorre na na fixação da pena base (art. 59), quando se avalia o comportamento da vítima, ensejando a mitigação da reprimenda.

(4) tipicidade - é necessário que o tipo culposo esteja expressamente previsto na lei, pois nem todos os tipos penais existentes no Código ou nas Leis Extravagantes comportam a modalidade culposa. Aliás, pode-se afirmar que a maioria dos tipos são dolosos, constituindo exceção os culposos. Nos crimes contra a vida, por exemplo, apenas o homicídio admite a forma culpos a.

(5) inobservância do dever de cuidado objetivo - constitui regra elementar da convivência humana agir sempre com o cuidado necessário para evitar que as ações praticadas não venham a causar dano a terceiros. Uma das mais conhecidas máximas de Ulpiano é aquele que preconiza os preceitos fundamentais do direito: viver honestamente (honeste vivere), não ofender ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere). Assim, o cuidado objetivo é apenas o corolário natural da expressão latina neminem laedere, que nos sugere agir com precaução e muita prudência para não ocasionar danos a terceiros. A inobservância do cuidado objetivo representa uma ação irrefletida, estabanada ou ou descuidada capas de causar dano e que poderia ser evitada com maior atenção e cuidado. Traduz-se em (a) imprudência que é a prática de um fato perigoso, irrefletido, ou seja, uma ação positiva; b) negligência, que é a ausência de precaução, omissão ou cuidado, enfim, uma ação negativa; e c) imperícia, que nada mais do que a falta de aptidão ou destreza para executar determinada tarefa.

Homicídio culposo qualificado. Assim são chamadas as modalidades das condutas que agrega qualquer uma das circunstâncias estabelecidas no § 4º, a saber:
a) inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício: significa que o agente, conhecendo as regras técnicas da sua profissão, arte ou ofício, deixou de observá-las, como por exemplo, o médico que não esteriliza os instrumentos utilizados na cirurgia, o motorista que dirige com um braço engessado ou falando ao celular, o pintor que deixa solventes e outros produtos perigosos expostos ao alcance de crianças, o eletricista que instala equipamentos elétricos sem aterramento, entre outros;
b) omissão de socorro: ocorre quando o agente deixa de prestar socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato ou foge para evitar a prisão em flagrante.

Perdão Judicial: no crime culposo, é possível o perdão judicial pelo juiz, a quem é facultado isentar de pena o agente quando, fundamentadamente, observar que o próprio fato danoso acarretou conseqüências tão graves que tornaram a punição inócua e desnecessária. Exemplos: motorista que perdeu a família no acidente que provocou, que ficou paraplégico ou com sequelas neurológicas graves, comerciante que perdeu todo seu patrimônio no incêndio culposo que ele mesmo provocou.

Crimes culposos no trânsito

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 23/09/97) passou a tratar autonomamente dos delitos culposos de trânsito, criando novos tipos e cominando para os crimes de lesões corporais e homicídio penas mais severas do que aquelas previstas no Código Penal. Assim, quando praticados na direção de veículo automotor, têm pena diferenciada. No caso do homicídio, a pena é de 2 a 4 anos de detenção, aplicando-se, cumulativamente, a suspensão ou proibição de obter habilitação para conduzir veículos automotores.

Examinados os aspectos conceituais dos tipos culposos, as indagações suscitadas pela embriaguez ao volante devem orientar o intérprete na aferição da previsibilidade objetiva do resultado e a sua aceitação pelo agente ou a sua indiferença a este, pois isso implica a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, cuja repercussão na órbita do jus libertatis é profunda, determinando, inclusive, a competência do Tribunal do Júri ou do juízo criminal comum.

“Infelizmente, muitas decisões criminais são proferidas por juízes pouco afeitos à doutrina penal, vindos de outras áreas do Direito, que se limitam a repetir decisões de outros julgados, sem a preocupação com uma análise mais acurada da Ciência Penal, com uma elaboração mais apurada. Nesse sentido, ver também Muñoz Conde, Derecho Penal y control social". (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1, 13ª ed. São Paulo: 2008, Saraiva, 549).

A propósito do tema, oportuna a lição de HUNGRIA, exposta por FRAGOSO:

“Nota-se que, principalmente na justiça de primeira instância, há uma tendência para dar elasticidade ao conceito do dolo eventual... três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada ... A certa altura, um dos competidores não pôde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado, em estado gravíssimo, para um hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os três rapazes vieram a ser pronunciados como co-autores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se eles houvessem previamente anuído em tal evento, teriam, necessariamente, consentido de antemão na eventual eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas evidentemente confiaram em sua boa fortuna, afastando de todo a hipótese de que não ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente,estupidamente, para o próprio suicídio.”
(FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários... Vol. I, Tomo II, 5 ed. Rio: 1978. Forense, p 543/544).

Mas os tribunais brasileiros, talvez premidos pelas pressões midiáticas, esquecem a lição dos mestres precursores e passaram a conviver perigosamente com um novo pensamento ditado por razões de política criminal, na vã ilusão que tantas vezes volta a assombrar o pensamento jurídico-penal, supondo que se pode alcançar a almejada paz no trânsito mediante a impossição de penas mais severas. O problema é gravíssimo, mas exige soluções mais criativas. Não se pode vislumbra com clareza a vantagem que a sociedade obtenha ao remeter jovens imprudentes - a maioria dos envolvidos nos acidentes - às incertezas e agruras do Tribunal do Júri e, muito pior, à possibilidade da convivência deletéria com indivíduos de maior periculosidade nos ambientes degradantes dos cárceres.

Exemplo desse pensamento equivocado é a decisão recente do Supremo Tribunal Federal, que, por coincidência, traz à baila caso idêntico ao citado por Hungria há mais de sessenta anos, ainda
nos primórdios da indústria automobilística brasileira.

“A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou “pega” ou racha”, em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas). Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente. O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis. Não houve julgamento contrário à orientação da Súmula 07, do STJ, eis que apenas se procedeu à revaloração dos elementos admitidos pelo acórdão da Corte local, tratando-se de quaestio juris, e não de quaestio facti.”
(STF, HC 91.159/MG. Relatora Ministra Ellen Gracie. DJ 24/10/2008, Ementário nº2338-2)


Questiona-se: A incriminação dolosa do motorista embriagado não seria espécie de imputação objetiva baseada numa interpretação equivocada da doutrina actio liberae in causa?

Ouçamos a palavra dos doutos:

"Nosso legislador criou um caso de imputabilidade ex vi legis. Trata-se de ficção jurídica. Consagrou-se a responsabilidade objetiva, rejeitada pelas leis, repudiada pela doutrina e várias vezes impugnada pela Comissão Revisora. Inexistente o nexo psicológico (dolo ou culpa) em relação ao delito, só pode evidentemente ser objetiva a responsabilidade. A teoria das actiones liberae in causa supõe a supressão da capacidade ética (intelectiva e volitiva) no momento do crime, porem responsável o agente por ser livre no instante antecedente, quando, então, desejava cometer o delito (imputação a título de dolo), ou devia, pelas circunstâncias em que se encontrava, prever que poderia vir a praticar determinado fato delituoso (imputação a título de culpa). Esta, a culpa, pode ser atribuída somente quando a pessoa tem que praticar ação certa e determinada e embriaga-se, devendo saber que em tal estado não a poderia executar. Haverá, então, culpa strictu sensu. [...] não há dúvida de que, embora louvável o intuito do legislador, ele, aqui, consagrou a responsabilidade objetiva.”
(NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. São Paulo: 1998. Saraiva, 33 ed, vol. I, p.186/187)


“A punição de crime praticado em estado de embriaguez plena, quando o agente na fase de imputabilidade precedente não quis nem previu o resultado, nem este era previsível em vista de circunstâncias particulares em que se encontrasse o agente, foge ao princípio da culpabilidade, mesmo na espécie da actio libera in causa. Falta, na hipótese, quando o sujeito ainda imputável, dolo ou culpa em relação ao crime determinado, e isso é conceitualmente indispensável à configuração desse instituto, segundo a boa doutrina. A embriaguez cria uma situação mental anômala, mas que só se evidencia criminalmente perigosa pela prática do ato definido na lei como crime, situação em si mesma penalmente irrelevante... O comportamento típico do agente em estado de plena intoxicação alcoólica é inculpável e, portanto, conceitualmente não punível. O conflito entre a lógica jurídica e as exigências de política criminal, que surge na matéria, é insolúvel. Só resta evitá-lo retirando o problema do domínio da pena, sujeito ao princípio da culpabilidade, para o campo da medida asseguradora. Aliás, o alcoolismo, corretamente entendido, é um problema de Política Social, e não do Direito Punitivo. Por isso, aqui ele funciona como elemento perturbador da coerência do sistema.”
(BRUNO, Aníbal. Direito Penal Parte Geral – Tomo II. Rio: 2005, 5 ed, p.102/103).


“Embriaguez completa voluntária ou culposa. Quer o agente beba no intuito de embriagar-se, quer o faça apenas por beber, atingindo o estágio da embriaguez pela sua imprudência ao conduzir-se, a ação de beber, nos dois casos, é imprudente, tanto pela finalidade como pela maneira como procede, e que o leva a um estado em que não mais tem condições de controlar, conscientemente, os seus atos posteriores. Em tais condições, o agente, se der causa a um resultado típico, ingressa na fórmula do art. 18, II. Atente-se que, se não existisse o tipo culposo, a conduta ficaria atípica, de conformidade com o parágrafo único do art. 18. Também seria atípica a ação que preenchesse todos os requerimentos do tipo culposo, como, por exemplo, quando o resultado não for previsível, de acordo com o curso ordinário dos fatos...
(ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, São Paulo: 2004. RT, 5 ed, p 508).

Ressalva-se, contudo, que os memos autores, cultuados como próceres do direito penal moderno e liberal, paradoxalmente, refutam HUNGRIA, afirmando: "Quem se lança numa competição automobilística de velocidade, numa cidade populosa, à custa da possibilidade de produção de um resultado lesivo, age igualmente com dolo eventual de homicídio, lesões e danos.” (Idem, p 475).

A posição de BITENCOURT parece ser mais cuidadosa e abrangente:

"Entre as causas biológicas que podem excluir ou diminuir a responsabilidade penal, o Código Penal inclui a embriaguez, desde que completa e acidental. A embriaguez pode ser definida como a intoxicação aguda e transitória provocada pela ingestão do álcool ou substância de efeitos análogos. Segundo a classificação mais tradicional, a embriaguez apresenta três estágios: inicial – de excitação, de depressão; letárgica (sono profundo ou coma). [...] Pelos postulados da actio liberta in causa, se o dolo não é contemporâneo à ação é, pelo menos, contemporâneo ao início da série causal de eventos, que se encerra com o resultado danoso. Como o dolo é coincidente com o primeiro elo da série causal, deve o agente responder pelo resultado que produzir. Transportando essa concepção para a embriaguez, antes de embriagar-se o agente deve ser portador de dolo ou culpa não somente em relação à embriaguez, mas também em relação ao fato delituoso posterior. Basileu Garcia, inconformado com as consequências da embriaguez voluntária ou culposa e com o entendimento sustentado por Nélson Hungria, pontificava: “Não percebemos o nexo de causalidade psíquica entre a simples deliberação de ingerir bebida alcoólica e um crime superveniente. O agente não pensa em delinquir. Nem mesmo – admita-se – supõe que vai embriagar-se. Entretanto, embriaga-se totalmente e pratica lesões corporais num amigo.” E a seguir, reconhecendo tratar-se de responsabilidade objetiva, ou, pelo menos, ausência de culpabilidade em grau relevante para o Direito Penal, sugere Basileu Garcia, provocativamente, que “... Se também extensão se pretender emprestar à teoria das actiones libera in causa, então também o doente mental, que assim se tornou apenas suas culpável imoderação no uso do álcool, devia ser responsabilizado...”
Finalmente, ao contrário do que seria na hipótese de actio libera in causa, a conduta praticada pelo ébrio será considerada dolosa ou culposa, não pela natureza da embriaguez – voluntária ou culposa – pertencente à fase de imputabilidade real, mas segundo o elemento subjetivo do momento em que a ação é praticada. Em outros termos, isso significa que de uma embriaguez dolosa pode resultar um crime culposo, assim como de uma embriaguez culposa pode resultar um crime doloso.
[...] Considerando a motivação da norma como um fator inibitório e objetivando prevenir a embriaguez, o legislador brasileiro equiparou a vontade do ébrio à vontade livre e consciente de qualquer agente imputável. No entanto, nem sempre se pode admitir que seja consequência da actio libera in causa, pois Manzini já reconhecia que, se a lei admite a imputabilidade a título de dolo para as infrações penais praticadas em estado de embriaguez, mesmo quando culposamente adquirido, -lo por motivos de política criminal, que nada tem a ver com actio libera in causa.
Para nós, ocorrendo a embriaguez não acidental (voluntária ou culposa), deve-se analisar, in concreto, se o agente, nas circunstâncias, é capaz de culpabilidade, sem chegarmos, no entanto, ao ponto de vista de Damásio de Jesus, que considera o art. 28, II, do CP revogado pelo art. 5º, LVII, da CF.
[...] Poderá o agente praticar um ilícito penal em estado de embriaguez, que era absolutamente imprevisível no momento ou antes da embriaguez. E quando há imprevisibilidade não se pode falar em actio libera in causa, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao Direito, anterior ao estado de embriaguez, isto é, quando o agente encontrava-se em perfeito estado de discernimento. No entanto, os tribunais pátrios não têm realizado uma reflexão adequada nesses aspectos... Se houve ou não previsibilidade do fato no estágio anterior à embriaguez não tem sido objeto de análise...”
(BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1, 13ª ed. São Paulo: 2008, Saraiva, 366/369).

Outra polêmica atual é aquela que questiona: conduzir veículo na via pública estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas (art. 306 do CTB ) configura crime de perigo concreto ou abstrato?

Este é mais um problema proveniente da ligeireza com que se produzem ou se modificam tipos penais por legisladores não afeitos à Ciência Penal. A Lei 11.705/2008 pretendeu aumentar o rigor e facilitar a punição dos casos de embriaguez ao volante, mas o fez açodadamente e provocou efeito inverso, ao exigir como elemento objetivo da tipicidade a prova da concentração de álcool no sangue em níveis iguais ou superiores a seis decigramas por litro. Mas como o réu não é obrigado a produzir prova contra si mesmo, também não é obrigado a se submeter ao etilômetro ou a permitir a coleta de sangue para exame laboratorial. Portanto, o exame clínico e a prova testemunhal já não bastam para evidenciar a adequação típica da conduta.


A redação anterior dizia o seguinte:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem."
Vê-se a presença de um elemento normativo que exigia, além do consumo de álcool a condução do veículo de maneira perigosa.

A redação atual afirma:
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência."
Desapareceu o elemento normativo, ou o fim especial da ação “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Ora, o exame apto a aferir a presença e a quantidade de álcool no sangue se faz por meio de amostras coletadas na corrente sanguínea. O etilômetro mede a concentração de álcool alveolar encontrado nos pulmões, com margem de erro de até 2 dg de álcool no sangue, que equivalem a 0,1 mg de álcool por litro de ar expelido no bafômetro. Um e outro exame dependem do fornecimento de material pelo motorista: sangue ou ar expelido pelos pulmões. Mas a Corte Suprema, interpretando o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal e art. 8º, II, g, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos declarou que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, conforme HC 93.916-PA, Rel. Ministra CARMEN LÚCIA, 1ª Turma, 10/06/2008, DJ 27/06/2008, e HC 78.708/SP, 1ª Turma, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 16/04/1999, p. 8. Entendeu também que o exame realizado sem a prévia informação ao motorista de que se poderia recusar a ceder o material constitui prova ilícita, por força do artigo 157, caput, do Código de Processo Penal.

Luiz Flávio Gomes rejeita a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, afirmando categoricamente que é uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio constitucional implícito da ofensividade. Assim, todo tipo que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto. (GOMES, Luiz Flávio e MOLINA, García-Pablos de, Direito penal – Parte Geral, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.).

A criminalização das condutas de perigo abstrato se justifica na atribuição da função preventiva do Direito Penal orientado para a diminuição do risco e para garantia da segurança social. Inobstante a concepção do Direito Penal de ultima ratio, somente se justificando a sua intervenção diante da ineficácia dos demais ramos do direito, não contraria a Constituição a construção de tipos de perigo abstrato. É inegável o risco da condução de veículo automotor por ébrios e a intensa potencialidade ofensiva que tal conduta possa causar a terceiros e à incolumidade pública.

O Departamento Nacional de Trânsito e o Ministério da Saúde informam a ocorrência de mais de trezentos mil acidentes de trânsito por ano no Brasil, ocasionando a morte de trinta e cinco mil pessoas por ano, em média. Isso equivale em morbidade à queda de um Airbus a cada dois dias. Ou, em outra comparação: 35.000/ano : 12 meses = 2.916/mês; 2.916 : 30 dias = 97,2/dia; 97,2 : 24 horas = 4,05/hora. Ou seja, quando concluirmos nossa exposição terão perecidos pelo menos doze pessoas. Esses dados conferem ao País o primeiro lugar no ranking das nações com maior índice de morbidade no trânsito.

Acrescente-se que no ordenamento jurídico há outros tipos de perigo abstrato cuja constitucionalidade nunca foi questionada, ressalvada uma ou outra decisão. São exemplos: porte desautorizado de entorpecente para autoconsumo ou mercancia; o porte desautorizado de arma de fogo ou de munição; omitir-se o médico em comunicar à autoridade sanitária doenças cuja notificação é compulsória. Para nós, situa-se no mesmo patamar de gravidade a condução de veículo automotor depois da ingestão da bebida alcoólica ou substâncias psicoativas que provoquem alteração na capacidade mental e motora do usuário.

A propósito do tema, colaciona-se julgado recente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal onde se afirma:

E M E N T A
HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. PROVA DA CONCENTRAÇAÕ DE ÁLCOOL NO SANGUE SUPERIOR AO PERMITIDO NO CÓDIGO DE TRÂSITO. DENÚNCIA QUE NÃO DESCREVE AÇÃO CAPAZ DE COLOCAR EM RISCO A SEGURANÇA VIÁRIA. TIPICIDADE DO FATO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. ORDEM DENEGADA.
1 O réu foi denunciado por infringir o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro pelo fato de ter sido flagrado conduzindo veículo em via pública com concentração de álcool superior ao permitido, conforme resultado apurado por etilômetro indicando 0,44mg de álcool por litro de ar expelido dos pulmões. O advento da chamada Lei Seca (Lei nº 11.705/2008) inovou o tipo penal de embriaguez ao volante, abandonando a exigência da prova do perigo concreto para sua configuração, conformando-se com a mera conduta de conduzir veículo automotor estando com uma concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas. Portanto, o crime é formal e de perigo abstrato.
2 Essa modalidade de criminalização de conduta tem se apresentado como uma das características da atual legislação penal e encontra justificação na função preventiva do direito penal, visando a diminuição do risco e a garantia da segurança social. O Brasil é campeão absoluto em violência de trânsito entre os países desenvolvidos e, diante o quadro dantesco que se desenha nas suas estradas e vias urbanas, o endurecimento da legislação se mostra não apenas aceitável, mas também imprescindível para garantir a incolumidade pública, a vida e a saúde da pessoa humana.
3 Ao Estado cabe o dever inarredável de utilizar todos os meios possíveis para o fim de conferir efetiva proteção aos seus cidadãos, podendo em prol dessa missão estabelecer de forma pontual as hipóteses em que as garantias fundamentais assecuratórias do direito individual de ingerir bebida alcoólica devam ceder ante a supremacia do interesse coletivo. A rigor, a norma penal em discussão atua em benefício do próprio paciente, de seus familiares e dos seus amigos, bem como de todas as pessoas que possam eventualmente ser vitimadas em razão da condução de veículo automotor por alguém destituído de sua capacidade plena de reação diante de imprevistos.
4. Ordem denegada por maioria, vencido o Relator.

(Primeira Turma Criminal, HBC2009002002302-2, Relator designado GEORGE LOPES LEITE, Publicação no DJU: 17/06/2009 Pág. : 113, acórdão nº 360258).

É isso aí. Os assuntos aqui tratados certamente ainda suscitarão muitos questionamentos. Portanto, cuidemos de aprender mais sobre eles. Até a próxima postagem.
Professor George Leite

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